Coincidência, talvez, que os últimos dois filmes que assisti no cinema tenham sido os de Brian DePalma e Martin Scorsese, outrora referências absolutas do que sempre julguei grande cinema. Coincidência feliz porém, porque, apesar de menores, são filmes que se complementam de maneiras inesperadas, jogando luz um sobre o outro.
É preciso confessar que bateu um certo mal-estar logo ao término das sessões. Fica difícil entender o porque destes dois mestres, a essa altura do campeonato, terem de interpretar esse papel ingrato de buscar muleta em material requentado e, no processo, agregarem suas assinaturas na marquise – "agregando valor" (a um bom preço, claro). São dois casos típicos de
one for them.
Estranho se permitir ficar fazendo conjeturas acerca das causas de gesto tal. Vindos de reflexões engajadas sobre o papel do autor na indústria (
Femme Fatale e
Gangues de Nova York – pulemos
O aviador), em que pesava a postura radical de quem põe a própria obra em jogo, os dois velhinhos sacaram a carta do superautor, jogando de um lado da balança uma bagagem pesada demais – com tributos a Lang e reverência algo embotada ao filme
noir –, desequilibrando o jogo a favor da assinatura deles, sem qualquer cerimônia. Não era o que os projetos pediam, naturalmente, e o resultado dessa queda de braço se revela, em alguns momentos, algo de bizarro.
Mas jogar com a própria obra pressupõe uma consciência altiva, um desprendimento, que pode ser confundido com impostura no mais das vezes. Há nestes dois ex-coroinhas um gosto legítimo pela subversão que vem de longe, dos tempos em que se divertiam peidando na igreja. O fato de terem iniciado suas carreiras comungando com pastores pervertidos (como Roger Corman e Sam Arkoff), em templos cheios de ratos e cheirando a mofo, deixa lá suas seqüelas, que podem ressurgir das maneiras mais incômodas.
E aqui o que se vê é uma vontade louca de afirmar, em cada corte grosseiro, em cada momento de descontrole, em cada solução aparentemente preguiçosa de
mise-en-scéne; o que se vê, ou ainda o que se ouve, é o ruído estrepitoso de um trem descarrilhado que caminha a todo vapor pra cima da gente. Um elemento de caos que se impõe sobre um falso movimento revisionista, uma tentativa de exegese (enganosa) de uma geração que, em tempo de derrota, tenta redescobrir seu papel em um mundo hostil.
É um gesto curioso, porque se opõe de maneira tão escancarada ao neo-romantismo de um Michael Mann, de um Shyamalan, ou até de um Spielberg...
Dália negra e
The Departed (pro diabo com o título brasileiro!) se somam a filmes como
Terra dos mortos, de Romero, e
Dança dos mortos, do Hooper, numa tentativa de buscar as matrizes do discurso e de se engajar mais uma vez – melancólica vez – na luta pela conquista de um espaço para falar abertamente, sem constrangimento, sem vergonha.
Nas últimas obras destes dois mestres, vemos surgir um verdadeiro bestiário norte-americano, um território simbólico em que a extrema violência prevalece sobre toda e qualquer razão, e onde os heróis assumem a condição de defuntos, mortos-vivos, viciados, justiceiros, dementes, seres rastejantes.
Em um cenário de crise moral aguda e generalizada, eles vêm nos resgatar quando reivindicam para si essa postura swiftiana – tão irlandesa, tão deliciosamente demente.